Lava-pés... Uma parábola viva
Vou começar com uma pergunta: gostaria de saber o que vem à sua memória,
com mais força, mais impacto, quando chega a semana da páscoa.
Então vamos refrescar nossa memória para depois voltarmos à
essa pergunta.
Numa longínqua noite de quinta-feira, numa província
dominada pelo Império Romano, um jovem mestre, que era perito em utilizar parábolas nas suas
palestras, naquela noite dramatizou o trabalho de um escravo.
Aquele mestre era Jesus de Nazaré. Ao lavar os pés dos discípulos, em seu último
jantar com eles, encarnou o personagem
de um escravo. Homens ou mulheres
escravos, tinham como uma de suas obrigações lavar os pés de seus donos e senhores.
Durante o jantar o mestre tirou seu manto,
tomou um toalha e uma bacia, se
abaixou e passou a lavar e enxugar os
pés de todos os discípulos, sem exceção. Inclusive, daquele que estava prestes a entregá-lo para ser crucificado, os pés do
traidor. Perplexidade, foi o que experimentaram seus seguidores, até que
entenderam o que significava aquele ato.
Jesus utilizou uma dramatização como técnica de ensino.
Técnica que torna os ensinos muito mais
vivos na nossa memória; mais que um sermão ou uma palestra. Portanto, o mestre queria que uma grande
lição ficasse registrada na mente de
todos os discípulos.
Em meio à toda riqueza de símbolos e ensinos que
envolvem o tema da Páscoa Cristã,
é justamente esse momento,
em que Jesus fez o papel de servo, ou escravo, que mais me marcou nos
últimos anos. É disso que falarei
logo abaixo. Trata-se de uma
passagem bíblica central na doutrina de um grupo religioso que surgiu na suíça,
por ocasião da reforma protestante, no século XVI: os Anabatistas, que em
português significa rebatizadores. Foram chamados assim porque batizavam as pessoas de novo, depois de
adultas; pois não aceitavam o batismo infantil.
Mas voltando à pergunta inicial, gostaria de saber o que
viria à sua memória, com mais força, mais impacto, quando chega
esta semana da páscoa. Dentre todos os
símbolos e imagens que cercam a Páscoa, o que mexe mais com você? Pode ser que alguém diga que é o chocolate,
eu entendo! Mas Deixando de fora os
ovos, os coelhos e o feriado prolongado;
tem mais alguma coisa que te marcou nos
últimos anos ?
Se você é daqueles ou
daquelas que gostam de história, poderia passar pela sua cabeça a cena da fuga de Israel, do Egito; e olha que há símbolos e imagens à vontade, nesse campo.
É quase
impossível em uma só crônica
conseguir abranger tanta cenas, imagens,
dramas, tragédias, sentimentos envolvidos nessas
passagens bíblicas, portanto, vou apenas citar os episódios para
refrescar nossa memória:
- O Sangue de um cordeiro servindo de tinta para pintar os umbrais das
casas dos Israelitas;
- Cheiro de churrasco; e dos bons. Carne de cordeiro
assada tomando conta do ar de uma cidade inteira; pois em todas as casas
dos israelitas, um cordeiro foi sacrificado.
Além do cheiro de carne havia também o do pão assado (sabe, no natal, que
em quase toda casa que você entra pode sentir o cheiro do pernil de porco ou peru, assando no forno! Pois é, algo parecido ocorreu na primeira
páscoa da história, só que com carne de cordeiro);
- Luto, dor, gemido
de desespero em um país inteiro.
Em todas as casas dos egípcios havia um ou mais mortos, devido a décima
praga: a morte dos primogênitos;
- Uma mudança coletiva; o êxodo. Uma população inteira deixando sua cidade. Seria mais ou menos como
transferir a população de Brasília
para o outro estado da federação;
e todo mundo saindo num só dia;
- O mar Vermelho, se
abre; e forma-se um corredor no mar para passagem
do povo de Israel;
- O afogamento
coletivo de Exército de Faraó, no
mesmo Mar Vermelho;
- A dança de júbilo,
das mulheres israelitas, após a travessia
do mar
Temos aí um misto de
cenas de drama, aventura, terror, etc,
que é pra nenhum Steven Spielberg botar defeito!
Mas e na última páscoa de Cristo, na terra! O que dizer! Há cenas igualmente,
impactantes, e até mais! Recordemos:
- A última ceia de Jesus com seus discípulos; na qual ele profere suas últimas
palavras, e lava os pés aos discípulos;
- O vinho e o pão que
são utilizados como símbolos do sangue
do Senhor e de seu corpo;
- O suor em gotas de
Sangue na mesma noite; da agonia de
Cristo no Getsêmane;
- A traição mais
conhecida no mundo: traição
de Judas Iscariotes, anunciada na hora do jantar;
- a Capital de Israel, uma cidade inteira, em alvoroço pela prisão e julgamento
do jovem pregador e mestre da
Galiléia;
- Um julgamento em
praça pública no qual o governador
Pilatos, teatralmente, lavou suas mãos perante a
platéia;
- Mais sangue devido à tortura imposta a Jesus pelos
soldados romanos;
- Um homem carregando
uma vigota de madeira para ser crucificado;
- Execução. Pena de morte
por Crucificação; de Jesus e dois ladrões;
- A natureza se expressou, pois o dia escureceu
em plena tarde;
- Acima de todas as anteriores: a Ressurreição de Cristo.
São tantas passagens
extraordinárias, que não é à toa que ao longo da história tem sido exploradas
em sermões, na literatura e pelas
artes de um modo geral, e Teatro, e Encenação da Paixão de Cristo nas
igrejas e ao ar livre, e filmagens para
cinema e televisão, etc.
Em meio a tanta riqueza de ensinos,
símbolos, histórias, cenas, enfim tudo que citei acima, poderia passar
despercebido um simples jantar do senhor
com seus discípulos, no qual ele faz questão
de lavar-lhes os pés. Mas Deus não permitiu que tal acontecesse, pois
João, um dos doze que estavam com o mestre à mesa, deixou bem registrado no seu
evangelho no capítulo 13, com detalhes, toda a cena. Passo a citar uma pequeno
trecho que João escreveu:
“Ora, antes da Festa
da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para
o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.
Durante a ceia, tendo já o diabo posto
no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus, sabendo
este que o Pai tudo confiara às suas mãos, e que ele viera de Deus, e voltava
para Deus, levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima e, tomando uma
toalha, cingiu-se com ela. Depois, deitou água na bacia e passou a lavar os pés
aos discípulos e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido.”
Voltando aos Anabatistas, aquele movimento de reforma
radical surgido no século XVI. Eles historicamente, consideram de grande relevância os acontecimentos da última ceia
de Jesus com seus doze discípulos. Especialmente o momento do lava-pés. Tanto que essa passagem bíblica de João, capítulo 13, é
mencionada constantemente nos seus escritos como base para um dos pontos fundamentais da fé
cristã anabatisa: o amor e o serviço ao
próximo.
Portanto, trata-se de um texto mencionado frequentemente nas suas igrejas, independente
de ser páscoa ou não, para lembrar aos
irmãos que o servir por amor a cristo é
um dos ensinamentos básicos de Cristo e do Novo Testamento. Dentre os
grupos anabatistas que conservam essa
tradição e realizam a cerimônia de lava-pés, estão os Menonitas, os Irmãos Menonitas,
os Quakers, os Amish e outros, espalhados em várias nações.
Nessas igrejas anabatistas, portanto, ainda se
realiza a cerimônia de lavar os pés,
literalmente, nos templos ou retiros. Os
pastores, pastoras e outros líderes
tomam toalhas e bacia e água, lavam e enxugam os pés dos demais membros da igreja, e relembram as palavras de Jesus,
do amor e serviço que devemos
prestar uns aos outros. Eu pude participar de várias dessas celebrações; o que muito impactou minha vida.
Entretanto, não se trata de uma cerimônia exclusiva de um só
grupo religioso, pois Católicos Romanos, Luteranos e Anglicanos também realizam
essa cerimônia nos seus cultos e missas, para lembrar os passos do mestre na semana
santa.
Agora voltando à passagem que João escreveu. Aquela
lição de humildade, sabiamente ensinada
pelo Senhor, na sua última noite, deixou os doze discípulos desconcertados. A
ponto de Pedro tentar que seus pés não fossem lavados pelo mestre; mas não pode
impedir diante da insistência de Cristo em lavar-lhe também.
Você está percebendo o que Jesus queria ao se comportar como escravo
para seus seguidores? Era demonstrar que Amar é servir; amar é
submeter-se. Assim como um submarino,
que necessita submergir nas águas para cumprir
seu propósito, assim o seguidor
de Cristo só cumpre seu propósito quando aprende a submeter-se a Deus e também
aos demais irmãos e agir como servo de todos.
Além de expressar
verbalmente o amor, temos que realizar ações práticas de serviço às pessoas,
pois isso é o que dá sentido à nossa pregação. O serviço
é o próprio amor em ação. O
compartilhar o pão; é a solidariedade.
O exemplo de Jesus demonstra que ele era Senhor, mas também Servo. Ele é apresentado nos evangelhos andando pelas
aldeias, visitando pessoas enfermas, curando-as, curando endemoninhados,
ensinando ao povo humilde nas casas, no templo, nas sinagogas, na praia, nos
montes; perdoando pecadores e pecadoras; acalentando os desvalidos, os párias
sociais, confortando os enlutados, desafiando
a abandonar a ganância; visitando casas de pecadores; conversando com
mulheres, crianças, mendigos, cegos, aleijados, leprosos, e curando toda sorte
de enfermidades; ressuscitando mortos, confrontando a hipocrisia das autoridades políticas e
religiosas, alimentando o povo, lamentando a dureza dos corações dos ouvintes,
chorando.
Enfim, Ele que veio para servir; e amou o ser humano até o fim, a
ponto de se entregar para ser crucificado.
Toda a vida de Cristo foi de servo obediente a Deus Pai, que o
enviou; que não fazia o que ele próprio desejava,
mas obedecia completamente à
vontade do Pai; que seu prazer
era cumprir a vontade do Pai. Por isso, Jesus tinha autoridade para ensinar
a seus discípulos que obedecessem suas palavras
e seguissem seu exemplo.
Numa sociedade onde as pessoas são incentivadas a serem
estrelas, a "brilhar mais que o sol", a serem deuses, essa lição de humildade e
serviço, do Lava-pés, choca muita gente; continua sendo desafiadora
a todos nós, e precisa ser ensinada e vivida até o fim.